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O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície.

O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície.

2 de janeiro de 2017, 10h18

Por Roberto Paulino de Albuquerque Júnior

Nos estertores do ano de 2016, foi publicada a Medida Provisória 759, que trata sobre “regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, e dá outras providências”.

O que mais salta aos olhos na MP é a previsão do chamado direito de laje, por ela inserido como direito real no artigo 1225 do Código Civil brasileiro[1].

A medida provisória ainda acrescentou ao Código Civil o artigo 1510-A, que dá os contornos do dito direito real de laje:

Art. 1.510-A.  O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo (…)[2].

O direito de laje não constitui um direito real novo, mas uma modalidade de direito de superfície que, desde 2001, já tem previsão expressa na legislação brasileira, a superfície por sobrelevação.

O que caracteriza o direito de superfície e distingue o seu tipo dos demais direitos reais é a possibilidade de constituir um direito tendo por objeto construção ou plantação, separadamente do direito de propriedade sobre o solo.

Em sentido mais técnico, há superfície quando se suspende os efeitos da acessão sobre uma construção ou plantação a ser realizada ou já existente. O implante que, por força da acessão, seria incorporado ao solo, passa a ser objeto de um direito real autônomo, o direito real de superfície.

Vê-se que, a partir dessa definição de direito de superfície, sequer seria necessário prever expressamente a possibilidade de sua constituição para a construção no espaço aéreo ou para o destacamento de pavimentos superiores já construídos. Da mesma forma, é desnecessária a menção expressa à possibilidade de superfície constituída sobre construções no subsolo. Se é possível construir no espaço aéreo ou no subsolo e essas construções sofrem, de ordinário, os efeitos da acessão, pode-se tê-las como objeto do direito real de superfície.

Do próprio tipo da superfície deriva a possibilidade de sobrelevação, portanto.

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), no entanto, houve por bem tratar da sobrelevação expressamente e assim deixou indiscutível a sua viabilidade:

Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.

§ 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.

Na doutrina, vários autores tem se ocupado do tema (vide, entre outros, MAZZEI, Rodrigo. Direito de superfície. Salvador: Juspodium, 2013; VIEGAS DE LIMA, Frederico Henrique. O direito de superfície como instrumento de planificação urbana. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; PERCÍLIO, Renata. Negócio jurídico de sobrelevação em direito de superfície. Dissertação de mestrado em andamento, orientador prof. dr. Roberto Paulino, UFPE).

Além disso, o Enunciado 568, da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, concorda com a possibilidade de constituição de superfície por sobrelevação no Direito brasileiro[3].

Trata-se, portanto, de uma figura já abarcada pelo tipo do direito de superfície e já utilizada.

Sequer a terminologia “direito de laje” pode-se dizer que tenha sido criada pela medida provisória. Já há alguns anos que se fala em direito de laje como uma expressão popular para a construção de novos pavimentos sem formalização do direito de superfície, algo comum em todas as regiões do país (entre outros, TEPEDINO, Gustavo. Os direitos reais no novo Código Civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, tomo II, 2006).

Em termos de redação, além disso, a MP merece crítica contundente, e já se erguem vozes a empreender tal crítica, como na coluna “Direito Civil Atual”, publicada na semana anterior, com texto de autoria do professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Junior (Um ano longo demais e seus impactos no direito civil contemporâneo).

Da regulamentação da sobrelevação sob o nome de direito de laje, dois pontos parecem ser mais relevantes: (a) a abertura de matrícula registral autônoma, um ponto delicado do direito de superfície no Brasil (artigo 1510-A, parágrafo 5º); a permissão de constituição do direito de laje sem submissão ao regime do condomínio edilício (artigo 1510-A, parágrafo 6º).

Tratam-se de regras úteis e importantes, que, no entanto, não parecem justificar a açodada opção do legislador de adotar a nomenclatura direito de laje e dar-lhe autonomia em relação ao direito de superfície.

Se o que se queria era ressaltar a possibilidade do direito de superfície por sobrelevação, bastava para tanto inserir um artigo no título V do livro do direito das coisas. Para acrescentar à disciplina do direito de superfície a possibilidade de abertura de matrícula separada para a propriedade superficiária e a desnecessidade de atribuição de fração ideal do terreno, outros dois artigos bastariam.

Não há sentido em inscrever como direito real autônomo no Código Civil uma modalidade de um direito real já previsto, muito menos em utilizar-se terminologia menos técnica quando já se dispõe de uma mais adequada em utilização. A finalidade que o legislador buscou alcançar não está clara, assim como clara não está a urgência que justificaria regular a matéria por medida provisória.

Da forma como está posto o texto, o que se tem é: (a) a positivação de um direito real novo cujo objeto já estava inserido em um direito real preexistente; (b) o abandono de uma expressão consagrada e precisa por outra de uso informal; (c) o problema topológico de se estabelecer a abertura de matrícula e a dispensa de atribuição de fração ideal apenas para a superfície por sobrelevação ou direito de laje, quando as regras deveriam se aplicar a todo e qualquer direito de superfície.

Trata-se, portanto, de uma alteração pouco feliz na regulamentação do direito de superfície, merecedora de reflexão e crítica por parte da doutrina, bem como de oportuna reforma.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] “Art. 1.225. São direitos reais: (…) XIII – a laje.”
[2] Art. 1.510-A.  O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. (…)
§ 1º O direito real de laje somente se aplica quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos.
§ 2º O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário do imóvel original.
§ 3º Consideram-se unidades imobiliárias autônomas aquelas que possuam isolamento funcional e acesso independente, qualquer que seja o seu uso, devendo ser aberta matrícula própria para cada uma das referidas unidades.
§ 4º O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade.
§ 5º As unidades autônomas constituídas em matrícula própria poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares, não podendo o adquirente instituir sobrelevações sucessivas, observadas as posturas previstas em legislação local.
§ 6º A instituição do direito real de laje não implica atribuição de fração ideal de terreno ao beneficiário ou participação proporcional em áreas já edificadas.
§ 7º O disposto neste artigo não se aplica às edificações ou aos conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não, nos termos deste Código Civil e da legislação específica de condomínios.
§ 8º Os Municípios e o Distrito Federal poderão dispor sobre posturas edilícias e urbanísticas associadas ao direito real de laje.
[3] VI Jornada de Direito Civil – Enunciado 568. O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística.